quinta-feira, 10 de julho de 2008

O RELATO DE UM SOBREVIVENTE




A ULTIMA VIAGEM DO NAVIO ARARAQUARA
Escrito por Milton Fernandes da Silva(sobrevivente)

As 14 horas do dia 11 de Agosto de 1942, zarpou do porto do Rio de Janeiro, com destino ao de Cabedelo e escalas em Salvador, Maceió e Recife, o navio-motor Araraquara sob o comando do capitão de longo curso, Lauro Augusto Teixeira de Freitas, levando em seu bordo 81 homens de guarnição e 96 passageiros.

No dia 13, quando em viagem Rio-Bahia, as 13 horas, achando-me de serviço, por ordem do Sr. Comandante, dei alarme para o serviço de salvatagem, o qual foi feito com a maxima presteza e absoluta ordem, não só por parte da guarnição como dos passageiros.

Fundeamos as 2 horas e 5 minutos, no ancoradouro do porto do Salvador no dia 14. As 7 horas atracamos em frente do armazem nº5, iniciando-se, então, as operações de carga e descarga, ficando a saída marcada para o dia seguinte as 11 horas. Conforme fôra marcada no dia anterior, as 11 horas do dia 15, deu o Sr. comandante inicio a manobra de desatracação, seguindo-se com destino ao porto de Maceió onde deveriamos chegar ao amanhecer do dia 16. Apesar de fortes ventos, mar e chuvas constantes, a viagem corria normalmente,

As 21 horas, achando-se o navio quase de trávés com a cidade de Aracajú, com o clarão da mesma a vista, eu dormia no meu camarote, quando fui despertado por um estampido ôco, seguido de estremecimento do navio. Levantei-me incontinente, ainda com o barulho da explosão e tentei acender a luz, mas já não havia energia elétrica. Compreendi, então, que o navio havia sido torpedeado. Vestia eu a calça do uniforme, por cima do pijama, quando aproximou-se o comandante perguntando ao oficial do quarto, 2º. piloto, Benedito Iunes, o que havia acontecido. Foram estas as suas palavras: -"Que foi isto, Benedito?"

O referido oficial preso de grande nervosismo nada respondeu, tendo eu dito então:

- Fomos torpedeados, e o navio está adernando consideravelmente. A este tempo a guarnição já se aproximava do passadiço aguardando a ordem do comando, que foi a seguinte:

- Ponham os colêtes salva-vidas e corram as baleeiras.

Foi executada imediatamente a ordem do comandante:

Ao passar pela baleeira nº1, em caminho da nº3, da qual me cabia o comando, vi já iniciando o serviço de arriar a embarcação, o comandante, o 1º. maquinista e outros que faziam perto da guarnição da mesma.

Quando chegava a baleeira nº 3, após ter passado aproximadamente 1 minuto da primeira explosão, estando o navio já bastante adernado para boreste, lado do mar, onde bateu o torpedo, novo estampido foi ouvido, seguido logo por outra explosão que incendiou o porão nº 3, e derrubou parte do botequim, tendo a tolda do mesmo arriado sobre a minha baleeira, inutilizando-a completamente. Vendo a impossibilidade de arriá-la, pensei em salvar parte da guarnição, e subi ao teto da ultima tolda a procura das balsas, as quais, não encontrei, pois, já haviam caido ao mar, dado a grande inclinação do navio. Voltei a baleeira, não encontrando mais a guarnição, pois, a mesma, vendo a impossibilidade de arrialá-a, procurara outros meios de salvação. Ordenei então, aos passageiros que estavam desorientados que fossem para o outro bordo, e procurassem salvar-se da melhor maneira possivel, pois, aquela baleeira não seria arriada; dizendo mais, que me acompanhassem. Saí de gatinhas pelo convés, seguido de vários passageiros e desci cuidadosamente pelas balaustradas das toldas até chegar ao costado que já se achava na horizontal, estando, assim, o navio completamente deitado. Corri até a quilha, fazendo-me ao mar, certo de que seria impossivel salvar-me. Nadei um pouco auxiliado pelos vagalhões que me afastavam rapidamente do navio. Parei e pude presenciar o mesmo, enterrar, ou melhor, mergulhar a popa, ficando completamente em pé e desaparecendo.

Não houve tempo para ser arriada nenhuma baleeira, tendo sido empregado todos os meios para isso.

Com o vácuo produzido pelo afundamento do navio, fui um pouco ao fundo, tendo bebido bastante água com óleo e levado diversas pancadas com os destroços do mesmo. Quando voltei a superficie, e consegui respirar, agarrei-me a uma caixa que boiava, carga do porão nº 3. Nisto avistei um pedaço da tolda do botequim e nadei para ele, onde subi e pude recolher mais 3 pessoas, sendo: o 3º. maquinista, Eralkildes Bruno de Barros, o moço do convés, Esmerino Slina Siqueira e um oficial do exército, passageiro do navio. Seguiamos a mercê das ondas, sem encontrar outras pessoas nas proximidades, a quem pudéssemos recorrer. Fui então apanhando e colocando sobre a tábua tudo que passava a meu alcance, e que julgava ter alguma utilidade. Assim foi que apanhei uma pequena prancha, um cavalete, um saco de farinha de trigo e um balão defensa, do qual aproveitei o chicote do cabo para amarrar sobre as taboas a pequena prancha e o cavalete, para que o mar não os levasse, pois, os mesmos serviam de lastro, isto é, faziam peso na tábua, afundando-a, evitando que a crista das vagas as arrebentassem.

Durante toda a madrugada avistamos constantes clarões de explosões no local onde afundou o navio, explosões estas, que creio terem sido nas garrafas de ar comprimido e nos tanques de óleo. Continuamos sobre as tabuas, notando que o mar nos aproximava cada vez mais para terra, sempre em frente a barra do Aracajú.

Assim passamos o resto da noite de 15, todo o dia 16, quando aproximadamente, as 2 horas do dia 17, o marinheiro começou a dar signais de perturbação mental, pedindo alimento, dizendo ter ouvido bater a campainha para o café, depois tentou agredir o tenente, o que evitamos; em seguida, desesperado de fome e sêde atirou-se ao mar, sendo impossivel qualquer salvação. Logo após, o segundo tenente começou a demonstrar o mesmo sintoma, perguntando pelos colegas. Lembrei-me, então de indagar seu nome e ele respondeu ser Oswaldo Costa. Tentei acalmá-l0, foi impossivel, atirou-se nagua. Com cuidado para não haver desequilibrio nas poucas taboas que nos restavam, agarrei-o pelas botas, conseguindo colocá-lo novamente sobre as mesmas. No entanto, poucos minutos depois, colocando-se numa atitude agressiva, dizendo que eu e meu companheiro estavamos embriagados, que ia para casa, fez-se novamente ao mar, sendo desta vez, impossivel salvá-lo.

Restavam agora, na tábua, sómente eu e o terceiro maquinista. Assim, continuamos sempre avistando o clarão da cidade de Aracajú, para onde eramos levados.

Ao clarear o dia, quando já avistavamos as casas da referida cidade, a vazante do rio Cotinguiba e o vento terral nos afastou para fora, fazendo-nos cahir na rebentação dos bancos. Esta acabou de destruir as taboas e nos atirou nagua. Lutamos com a dita rebentação nadando sempre em busca da prancha, pois, esta ainda nos oferecia resistencia, mas ao aproximarmos, eramos atirados novamente á distancia, tornando-se, assim, impossivel agarral-a. Continuamos nesta luta, até aproximadamente as 9 horas, quando avistamos uma corôa, para lá nos dirigimos. Notei que a maré enchia, e calculando que na préa mar, talvez não désse pé na dita corôa, e que estando fracos, pois, a 36 horas não dormiamos, nem nos alimentávamos, convenci ao meu companheiro que não devíamos descançar e sim nadar para terra, da qual já avistavamos o coqueiros. Assim ficamos sómente uns 10 minutos, afim de refazer as forças e fizemo-nos ao mar, nadando em direção da praia de Estancia, onde chegamos ás 15 horas. Exausto, deitei-me na areia para dormir, julgando ter meu companheiro feito o mesmo, quando fui acordado para beber agua de côco vêrde que êle havia apanhado. Reanimado subi tambem ao coqueiro, derrubando 4 cocos, dos quais bebemos a agua e comemos a polpa. Em seguida puzemo-nos a caminhar, e depois de andarmos 2-½ léguas, encontramos a fazenda da Barra de propriedade de Manoel Sobral, onde o administrador, Snr. Luiz Gonzaga de Oliveira, preparou jantar e nos ofereceu. Terminada a refeição, o dito administrador mandou dois de seus empregados numa canôa nos levar a cidade de S. Cristovão.

Durante a viagem, foi que conseguimos durmir um pouco no fundo da embarcação.

As 21 horas chegamos a dita cidade, e fomos recebidos pelo povo, apresentando-se, em seguida, o Snr. Prefeito, que nos encaminhou á sua residencia, obrigando-nos a fazer uma pequena refeição, enquanto aguardavamos a condução para proseguirmos a viagem até Aracajú. Pedi, então, que telegrafassem a minha família, participando que estava salvo.

Quando terminavamos a refeição, mais um sobrevivente do Araraquara apareceu; era o passageiro Caetano Moreira Falcão, que havia dado a praia, numa das balsas, e foi recolhido por um pescador. Na referida balsa, vinham mais dois passageiros, que morreram lutando com a rebentação. O Sr. Prefeito, levou-nos no seu automovel para Aracajú, onde chegamos as 24 horas, encaminhando-nos ao Governador do Estado, com quem conversamos alguns momentos. Depois de deixarnos em palacio o colête e a boia salva-vidas que trazíamos conosco, retiramo-nos para o hotel Marozzi, onde ficamos hospedados.

No dia seguinte, fomos socorridos e medicados pelo médico do posto assistencia Dr. Moysés.

Fiquei 10 dias impossibilitado de me locomover, por ordem do medico e durante este periodo, outros náufragos foram chegando em Aracajú; disto era informado pelo Sr. Agente, Dr. Carlos Cruz, ao qual pedi que telegrafasse a Companhia, cientificando-a de tudo, assim, como, as familias que me telegrafavam pedindo noticias dos seus.

Os outros sobreviventes foram os seguintes: José Pedro da Costa, barbeiro, que salvou-se sózinho em um pedaço de taboa; Francisco José dos Santos, marinheiro, e Mauricio Ferreira Vital, taifeiro, que salvaram-se numa das balças, trazendo consigo a passageira, d. Eunice Balman; José Rufino dos Santos, marinheiro, José Correia dos Santos, moço, e José Alves de Móla, carvoeiro, que chegaram á terra montados na quilha da baleeira n.º4, que flutuou emborcada depois do navio submerso, e traziam consigo a passageira, Dona Alaide Cavalcante.

Vários cadáveres deram a praia, sendo fotografados pela policia e, dentre eles, pude identificar dois: o taifeiro, Celso Rosas e o cabo Caldeirinha, Pedro Vieira.

As baleeiras de nº. 1 e 2, também deram a praia, mas completamente vasias.

Dia 29, seguimos por ordem da Companhia, para a Bahia, ficando ahi hospedados á bordo do navio Itaquera, de onde saimos no dia 4 de Setembro, viajando por terra, com destino ao Rio de Janeiro, onde chegamos as 23 horas do dia 10.

Consta na cidade de Salvador, que os tripulantes do hiate e da barcaça que foram abordados, sendo a ultima bombardeada, identificaram como de nacionalidade alemã a guarnição do submarino, ficando assim provado e reconhecido os covardes que torpedearam no espaço de 48 horas, 5 navios de passageiros, completamente indefesos.

Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1942.